29/05/2012

Câncer em calda

A atarefada realeza corre esbaforida por sob a cabeça de seus súditos, os últimos acontecimentos tinham colocado em cheque sua autoridade e alguém tinha de pagar por isso.

Não distante um franzino vira-latas fuça o lixo atrás de alimento. O corpo consumido pela sarna mal é capaz de manter em pé o pequeno animal. Desde que nasceu sua vida solitária tem sido uma incansável busca pela sobrevivência. Sobrevivência essa que será cessada em breve para acalmar com sangue os Deuses do Jardim do Ego.

Não eram dólares, barras de ouro nem barris de petróleo, a moeda de troca naquele aparente pacato vilarejo era a vaidade. Com vaidade se pagava e com vaidade se cobrava e como eram altos os preços do mercado.

No reino da vaidade cada ser humano é um feudo e cada feudo é pateticamente administrado como se fosse o mais importante do mundo. Dezenas, centenas, milhares de prefeitos, senhores e generais, cultuando seus domínios como se fossem o centro do universo.

Quando Copérnico atestou que a Terra gira ao redor do Sol ele ainda não era capaz de enxergar uma verdade maior: a Terra gira ao redor do umbigo de cada ser humano.

Pequeninas cargas de energia que quando amontoadas em determinada ordem geram uma infinidade de variações, que dentro da realidade humana podem se manifestar como santos ou demônios. E eram demônios que consumiam cada grama do pequeno vilarejo, em troca de uma momentânea foto no hall da fama dos há muito esquecidos antepassados.

Território limitado e cercas bem definidas, forçam a ganância a avançar por novos reinos imaginários registrados em ata e formalizados oficialmente em siglas. O organograma na parede materializa o que não existe.

Mesmas pessoas, mesmos prédios, nova administração, fundada exatamente sobre as mesmas premissas das administrações anteriores. Se digo que sim escuto um não, se dizem que não retruco com o sim. Positivo, negativo; aprovado, refutado. Muito foi feito, mas pouco foi mudado.

Pausa para o café. O inocente vira-latas respira seus últimos sopros de ar.

Cada frase um discurso, ouvidos escancarados para absorver a genialidade alheia, fortemente ancorada em meias verdades cuidadosamente estabelecidas sobre resultados pouco conclusivos. Entenda, você não precisa da verdade, precisa da minha opinião.

E assim, um atrás dos outros eles vão e vem. Sempre eternos em suas hegemonias temporárias. Chegam fortes e gordos e partem velhos e cansados; a vaidade é um veneno perigoso.

A faca rasga a garganta do animal, manchando de vermelho as mãos da realeza agora saciada. Sempre que o mais forte é ameaçado o mais fraco geme. Nada mais fácil e revigorante do que chutar cachorro morto.

Desconhecem os governantes sobre os ensinamentos do antigo sábio: "quem vive para si vive em vão, quem vive para os outros vive eternamente".

22/05/2012

Escombros

Por sob os escombros do prédio da empresa de segurança, jazia o corpo ainda vivo de uma jovem senhora de seus quase trinta e cinco anos. Pálida, apática e coberta de cimento, lenta e dolorosamente seu ser se fundia com as ruínas.

Não que ela tivesse desistido, pelo contrário, seu coração sozinho bombeava o sangue de todos os feridos, como se a própria estrutura metálica da edificação tivesse se transformado em veias e artérias.

"Sinto muito medo", foi o que ela me disse vinte anos depois do acidente. Me confessou que de alguma forma sua mente ainda estava presa aos destroços. Como o pneu velho que atirado ao mar se transforma em milhões de pequeninos seres que em sua superfície encontram moradia, assim também as memórias se fundem aos cacos das lembranças, que costuradas em redes nervosas sangram muito para ser removidas.

Ainda assim, presa e curvada, nunca a vi desistir. Era como se seu coração tivesse desenvolvido uma habilidade de sobreviver e carregar o corpo adiante, mesmo quando o cérebro há muito já havia desistido.

Foi através dessa vontade que tive o privilégio de assistir seu renascimento, enquanto rastejava para fora de seu mundo reprimido. "Não é questão de força ou fraqueza, mas de saber que ainda tenho muito o que fazer", me falou depois.

E ela fez mesmo.

Caminhou por onde outros diziam ser impossível, escutou atentamente os que não tinham voz, carregou no colo os que não podiam andar. Incansável e humilde, nunca a vi pedir parabéns, nem nunca a vi se sentir lisonjeada com as palmas. Em sua cabeça sua missão era clara: fazer o bem é o único caminho possível, o que existe para ser elogiado?

Um dia reapareceu radiante e me disse com uma enorme verdade: "obrigado por me libertar". E eu respondi: não somos dois você e eu, nossa liberdade é compartilhada. Eu que preciso lhe agradecer por me abraçar tão forte quando as vigas cederam. Obrigado, mãe.