21/10/2013

180 por hora


Não é mais dia, mas ainda não é noite. A penumbra da transição entre a claridade e a escuridão acompanha meus passos. Ritmo constante, marcado pela respiração profunda e pelos batimentos cardíacos registrados no relógio com monitor cardíaco.

140 batimentos por minutos, ainda não estou na faixa de treino, acelero o ritmo, os pensamentos acompanham meu exercício solitário.

   "- Não sei até onde posso confiar em você."
   E qual a outra opção?

   "- Acorda Maurício, você vai perder o horário."
   Eu não me chamo Maurício.

148 batimentos por minuto, 79% da minha frequência máxima.

   As expectativas alheias me perseguem na rua. Todas as cláusulas que fui obrigado a assinar e fiquei com preguiça de ler. Gostaria de relaxar, sabendo que nunca será o bastante, que o que ofereço é o que temos para hoje, mas o caminho é longo e o treino apenas começou.

152 batimentos por minuto, 82% da frequência máxima, porém com 6 minutos por quilômetro ainda estou longe do meu ritmo. Vamos!

   Recordo do passado recente, de como as coisas se desenrolaram, de como foi difícil fazer algumas escolhas, de como foi difícil enfrentar o perigo de cabeça em pé. Seria tão mais fácil sentar na posição de passageiro e deixar a vida levantar vôo, mas poesia não enche barriga, nem apazigua o ardor do fogo na pele.

   Os ativistas salvaram os cachorrinhos, mas largaram os ratos para trás. O batom vermelho delineia os contornos da boca. E as crianças? Quem vai salvar as crianças? E os mendigos? E os pobres? E os doentes? Gritos altos ecoam, quem vai me salvar da minha passividade? Da minha falta de motivação, da minha falta de coragem em buscar o que quero?

   A barriga aumenta, os filhos são esquecidos no quarto e a jornada de trabalho é a culpada pela falta de tempo. Devia ter lido as cláusulas! Ainda bem que amanhã é segunda, amanhã vou mudar, amanhã serei quem eu gostaria de ser, amanhã vou atrás de tudo que deveria estar fazendo.

161 batimentos por minuto, estou acima do limite saudável. Beep, beep, beep, o monitor cardíaco reclama. Desse ponto não tem volta.

   Busco encarar os problemas de outra forma, enumero as soluções, rio da besteira que isso tudo representa. A estratégia de resolver conflitos com aparentes verdades é muito efetiva. Deus dará! Meu fracasso é só falta de fé!

   Os números se repetem na tela do computador, uma, duas, trezentas vezes. Cada vez melhor em chegar a lugar nenhum. A tela do celular interrompe o mantra digital. Alguém compartilhou a curtida da minha foto, que delícia, mais uma dose homeopática de clonazepam invade minhas artérias. Quero mais.

   O café esfriou na mesa, é a segunda vez hoje. Dez minutos se passaram e nada apitou, melhor ver se o celular está com sinal; dez minutos se passaram e nada apitou, melhor ver se o celular está com sinal; dez minutos se passaram e nada apitou, melhor ver se o celular está com sinal.

167 batimentos por minuto, 90% da frequência máxima, o corpo chia, a cabeça voa. Agora vai.

   Depois de nove meses trabalhando de graça finalmente a primeira parcela caiu na conta - pensaram que eu ia abrir mão. Os resultados das simulações mostraram que as suspeitas iniciais eram corretas - imaginaram que não seria possível. Estive presente - disseram que eu não iria.

   Só é difícil mesmo quando você para para pensar. Analiso, observo, corrijo a rota. Estou no caminho certo, seta para cima. Se parece que estou perdido, é só charme, tenho plena consciência do que faço.

172 batimentos por minuto, se fosse um teste ergométrico a enfermeira iria suspender a atividade. Falta pouco, reta final, eu não vou parar.

   A endorfina preenche o corpo, juntamente com o silêncio que permeia os não pensamentos. Cabeça vazia, um pé depois do outro, a brisa da noite seca o suor do rosto. Não me recordo do meu nome, que nome?

   Plenamente conectados, eu, tu ele, nós, vós, eles. O redemoinho fica para trás, a prática liberta novamente. Profundo e sem barreiras - sem refém, não existe sequestrador - sei que gostaria de ouvir desculpas por não suprir vossos anseios, mas não há ninguém aqui para se desculpar. 

    Paz constante e eterna, sou seu devoto.

165 batimentos por minuto. Reduzo o ritmo, é o suficiente. O ego precisa chegar aos 180, eu não.